Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Doenças tropicais negligenciadas: a quem cabe investir em pesquisas para combatê-las? Imagens produzidas por inteligência artificial podem ser consideradas arte? O desafio de recuperar a cobertura vacinal no Brasil. Sabe o que os temas supracitados têm em comum? Todos eles já foram abordados em provas de redação de grandes vestibulares neste ano de 2023. Importa dizê-los agora, depois que tais exames já aconteceram? Sim, pois cabe uma reflexão sobre o antes, o durante e o depois dessa “saga” em torno das temáticas propostas pelas provas.
Quem já passou pela experiência desses processos seletivos sabe bem a força da curiosidade e da ansiedade contidas na pergunta: “Qual será o tema da redação?”. Sabe também que a resposta só vem no instante da prova – e fica repercutindo por um bom tempo… A ansiedade pode ser controlada (parcialmente) por uma boa preparação, ou seja, aquela que o capacita à discussão dos mais variados eixos temáticos: saúde, educação, cultura, meio ambiente, comportamento, tecnologia, trabalho, inclusão social, entre outros. Ainda assim, o tema é sempre uma surpresa.
No caso específico do Enem, tem sido comum a presença de questões relacionadas a grupos sociais vulnerabilizados. Uma simples olhada nos últimos temas comprova essa tese: “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil” (2017); “Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet” (2018); “Democratização do acesso ao cinema no Brasil” (2019); “O estigma associado às doenças mentais no Brasil” (2020); “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” (2021); “Desafios para a valorização dos povos e comunidades tradicionais no Brasil” (2022).
No último dia 5 de novembro, milhões de estudantes tiveram de refletir sobre o tema que abriu esta coluna: a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres no Brasil. Como se sabe, a redação do Enem é sempre propositiva: envolve a discussão de uma pauta-problema visando à proposição de medidas interventivas. Por isso, o pensamento da escritora e filósofa Djamila Ribeiro – extraído de seu célebre “Pequeno manual antirracista” – dialoga profundamente com as escolhas já feitas pela prova: “É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade.” É justamente o que faz o Enem ao trazer tais discussões.
Desse modo, o tema de 2023 não chegou a ser uma surpresa, tendo em vista a natureza das temáticas escolhidas pelo Enem, mas impôs desafios aos alunos exatamente por ser uma pauta invisibilizada pela sociedade. Afinal, a mulher que cuida dos filhos e da casa não ocupa o centro das discussões cotidianas – acredita-se que isso é natural, pois caberia realmente à mulher o papel de cuidadora, tendo ou não outra ocupação. “Sempre foi assim”, diria o mais espontâneo senso comum, dando de ombros.
Eis a empreitada imposta por todos esses exames: é preciso transpor o senso comum e ir além, “saindo da ilha para enxergar a ilha”, como explicou José Saramago. Isso é, inicialmente, incômodo porque intrincado, intrincado porque incomum, incomum porque, muitas vezes, não somos instigados a pensar fora de nossas confortáveis bolhas – ou nos recusamos a fazer isso. O último Enem exigiu que milhões de filhos notassem aquela que lhes preparou o lanche para a prova, que talvez os tenha levado para o local do exame, que ficou em casa torcendo pelo seu sucesso.
Sim, o texto promoveu uma metalinguística familiar calcada em silêncios: na amorosidade tantas vezes não pronunciada das cuidadoras e na imparcialidade exigida agora pelo discurso feito por nossos jovens. Coisas da vida: tema de redação.