O carnaval, originariamente, era uma festividade cristã antes da Páscoa. Marcava o início da primavera e, em algumas culturas, era relacionado ao solstício de inverno, um momento de trevas, de ausência de luz. Com a primavera chega a vida. Para os romanos, era festa com bebidas, danças e comidas e ocorria em fevereiro, mês da purificação desde os nossos ancestrais.
É tempo de exposição, de exibicionismo, de criações visuais e artísticas, constituindo, pois, um objeto de reflexão histórico-filosófica. E nos perguntamos: o que a Filosofia tem a ver com isso? Ela nos auxilia a conhecer as origens, para compreender o nosso presente (presente de festas carnavalescas) e conseguir viver esse momento com um pouco mais de consciência de vida.
Esse marcante acontecimento faz parte do processo de nossa existência, mostra instantes significativos no tempo e no espaço, cada um com seu valor, que nos propicia vermos um pouco do esplendor do viver.
O teórico russo Mikhail Baktin (1895-1975), chamado filósofo da interação, da cosmovisão da linguagem, num estudo de cultura popular na Idade Média, descreve o momento carnavalesco como uma “segunda vida” na qual o indivíduo pode “tecer relações novas, propriamente humanas com os seus congêneres”. Como diz o pensador, “o ideal utópico e o real se confundem provisoriamente na percepção carnavalesca do mundo”.
Com significado de regeneração, de renascimento, o carnaval dá acesso a um tempo ancestral, a uma dimensão da vida em que surge espaço para uma liberdade criadora e para a reinvenção da vida fora de proibições e dos habituais padrões. Ocorre a “experiência carnavalesca” de igualdade e de alegria coletivas.
Não é o que apreciamos, sobretudo, nos blocos e escolas de samba? Nessa dimensão utópica de carnaval, vamos apreciar uma utopia vivida na experiência da festa e, mais ainda, uma utopia idealizada, concebida como uma sociedade coesa, igual e livre.
No nosso país, a constituição do mito carnavalesco sempre tende a estabelecer uma ideia de coesão nacional, de unidade do povo. A utopia reside justamente em idealizar uma sociedade e não em contestá-la no objetivo de transformação social.
É importante salientar que o carnaval, no nosso Brasil, não se restringe ao momento excepcional de festa! É palco de uma disputa entre a cultura oficial e uma cultura marginalizada e não reconhecida, tornando-se, a nosso ver, um espaço de resistência (basta apreciar o exemplo do Olodum na Bahia).
Se, por um lado, é elevação das minorias, de outro lado, as elites, que muitas vezes o reprimem (vide a História!), reapropriam-se dessa forma cultural para enquadrá-la num âmbito mais consensual, algo bem apropriado com a sua histórica falsidade.
Contudo, torna-se necessário enfatizar que o carnaval, no nosso país, sempre foi uma atitude cultural que tem por intenção promover a teatralização da existência humana.
Realmente, o carnaval permite perceber, de maneira nítida, que o sentido da nossa vida é ofertado pelas máscaras e fantasias que incorporamos ao longo do tempo. Nesse evento tão marcante, ao fantasiar-se, muito provavelmente, adquire-se a compreensão de si como ser de autoconsciência e liberdade, e a pessoa se reconhece como produto de um conjunto de escolhas mais ou menos livres, que se operam com ela, por ela ou sobre ela.
Certamente, ao vestirmos uma fantasia, nos desnudamos de nós mesmos. A carnavalização da existência significa perceber que a vida é assim, mas, quem sabe, poderia ser diferente.
O que nos vincula ao que somos é algo que construímos para nós mesmos e assumimos como sendo nós mesmos, livres das amarras dos preconceitos, sobretudo de cunho religioso, sem culpas, sem o peso dos “pecados” que atiram contra nós, sem medo de “ser condenado” a arder nas fogueiras da hipocrisia “religiosa” que mancha a dignidade humana.