Saudemos Adélia Prado, que escreveu: “De vez em quando, Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. Sim, às vezes, a sensibilidade nos abandona e chegamos a questionar, inclusive, o propósito de viver, de escrever, de viver escrevendo. Vem um ceticismo indagar: “Escrever adianta alguma coisa?”. É preciso enfrentar essa descrença.
Escrever é uma técnica, como sabemos, mas é, antes de tudo, uma arte, como sempre louvaremos. E é sempre bom lembrar que toda arte é uma luzinha no meio do caos. Às vezes, é tudo o que temos na luta diária contra a escuridão. É o estopim da ação, a semente que impulsiona o movimento transformador.
Como afirmou Simone Weil, “o desejo de luz produz luz”. Nascida de um clamor genuinamente humano, a arte, uma faísca, cresce a partir de um desejo íntimo, particular, o qual, no voo da alteridade, alcança outros desejos iguais a ele (pela obviedade milagrosa da identificação) – e a luzinha vira clarão, espalhando-se pelo espaço, dissipando tudo o que anoitece os caminhos.
Quero com isso proclamar que escrever adianta, sim. Escrever salva! Salva quem escreve e quem lê. Clarice Lispector chega a dizer que “salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva”.
Por essa razão, toda vez que o ceticismo se avizinhar, convém resgatarmos duas imagens que sempre ajudam a combatê-lo: um cachorrinho sempre à espera de seu dono numa estação (quem não viu esse filme?) e uma criança distraída com seus brinquedinhos (quem nunca brincou assim?). A escrita só faz registrar esses momentos, lembrando-os a olhos tristemente esquecidos.
Arte envolve essa imprescindibilidade, pois o bem que nos faz é quase imensurável: expansão da compreensão de si mesmo e do outro, ressignificação de experiências, encantamento diante das lições de cada dia… Não é tempo perdido: é um respiro, um alento, uma luz no meio do túnel (nunca no fim).
Vida é travessia, lembra-nos Guimarães Rosa; enquanto atravessamos, escrevemos para decifrar cada evento e acabamos eternizando o que foi vivido. Sim, a arte prolonga o instante, aprofunda a experiência e – porque não? – faz a gente reduzir a velocidade ou mesmo parar um pouquinho. Para uma boa conversa. Escrever é conversar. Precisamos reservar um tempo para uma boa prosa!
Por falar nisso, Juraci Faria tem um texto belíssimo em que narra uma passagem de sua infância, descrevendo a alegria que sentia toda vez que o padrinho a levava até uma estrada, onde lhe mostrava um monte de vaga-lumes! Penso que quando lemos um bom texto, encontramos um monte de palavras brilhando na escuridão, como estrelas, ou vaga-lumes. E nos encantamos com a “superfície estrelada de letras” (como diria Drummond) – um espetáculo que enche os olhos e o coração da gente (como acontecia com a menina Juraci diante dos vaga-lumes)!
Ah, todas essas luzes piscando me levaram à Emília de Monteiro Lobato: “A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. (…). Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e anda, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre”.
Ah, é tão bom quando alguém escreve algo que a gente gostaria de ter escrito! Ler como quem vai ao espelho. Escrever para que haja espelhos e, assim, muitos olhos brilhem, encantados com o que veem, mesmo que seja uma pedra para a qual muitos nem olhariam – talvez nem você, nem eu. Saudemos todo aquele que olhou – e escreveu!