A minha infância ainda guarda na retina reminiscências de uma saudade inexprimível e irreprimível. Livros sobre o braço. Cabecinha oca. Depois, descalço. Futebol na calçada que queimava, sob a ação do sol, as plantas desprotegidas dos pés. E tipos populares a encher de alegria a já alegre e despreocupada existência.
- Olha o Bródo!
O homem de nariz vermelho vinha cantando, as mãos em concha na boca retorcida de toscano avinhado.
- Olha o Bródo!
E corríamos a ver o velho italiano, um dos tipos mais populares da cidade.
- Hai portato la segatura, Bródo? –
Bródo, porém, não trazia a serragem. As serrarias não o viam, quando o incorrigível boêmio cantor se punha a beber. E toda a cidade o queria bem. Quem sabe por que? Talvez porque Bródo guardava no imo de velho bêbedo um romance que nós não conhecíamos. E não seria aquela canção, sem eco e sem vibração, incompreensível para todo mundo, o grito d’alma de quem um dia foi feliz?!
Bródo “deveria” ter sido moço, apesar daquela velhice que parecia perpetuar-se na canção incompreensível e amarga de boêmio e alcoólatra…
Às vezes fico a pensar no velho Bródo, o entregador, por “conta própria”, de serragem das serrarias. Esvaindo-se a mocidade na dolorosa descrença de tudo que me cerca, consolo-me quando fico a pensar no primeiro cantor que minha meninice sem rádio e sem cinema falado ouviu, tendo como palco as ruas de minha amada cidade. E toma-me uma vontade louca de por me a beber e a cantar, num desvairamento brodiano, tendo como palco o mundo e como espectadora a infância de minha amada cidade! E depois, como Bródo, emudecer-se de uma vez, guardando para mim só, só para mim, o romance que minhas mágoas teceram!
- Mais vinho taberneiro!
Oggi non c’e segatura…
Ângelo Calabrese, Tribuna do Norte, 24/9/1944
Nota. Tradução para o português de duas frases:
- Hai portato la segatura, Bródo? (Você trouxe a serragem, Bródo?)
- Oggi non c’e segatura… (Hoje não tem serragem)