
O cheiro do feijão no fogo, bem temperado e cozido com os pertences do porco. Era tudo de que João mais gostava, chegar em casa no sábado depois do trabalho, cansado, e ver Joana, sua querida esposa, preparando seu prato favorito – feijoada!
Foi assim por mais de 30 anos de casados. Há cerca de 12 anos, a feijoada do sábado ganhou um sabor ainda melhor, desde que a sobrinha Lucinha veio morar com eles para poder continuar os estudos. Em agradecimento, Jandira, sua cunhada, mãe de Lucinha, trazia toda semana da roça os pertences do porco, que sendo criado à moda antiga, era muito mais saboroso.
Lucinha formou-se advogada, um orgulho! – Dra. Maria Lúcia Cândido de Alcântara. Morava na capital, mas estava de férias na roça dos pais e prestes a se casar. Foi distribuir os convites. Naquela manhã, Lucinha foi pessoalmente levar os pertences do porco para a feijoada do João, que Joana, embora ela mesma não comesse, preparava sempre com esmero, carinho e dedicação para o querido marido.
Joana até se espantou quando Lucinha chegou, há muito não a via, nem o convite de formatura mandou. Será que seriam convidados para o casamento?
A visita da sobrinha (quase filha) foi regada à alegria, saudades e muitas lembranças, inclusive algumas que Lucinha queria esquecer.
De repente, a sobrinha respirou fundo e mudou sua feição. Chorando, contou para a tia Joana que trabalhava tanto e dormia tão cansada que nem percebia que o Tio João, por noites e noites seguidas, ia ao seu quarto e lhe cobrava caro pela estadia.
Revelou que ele lhe tapava a boca e a fazia jurar que jamais contaria a alguém, pois isso magoaria muito Joana (que ele “tanto amava”).
Joana ali, inerte, ouvia… imaginando cada cena.
Agora Joana entendia por que Lucinha não os convidou para a formatura. Ela não queria o Tio João no seu álbum.
A visita de Lucinha foi tão arrebatadora quão esclarecedora. E antes de sair, a sobrinha ainda disse:
— Tia Joana, a decisão é sua, mas eu precisava lhe contar tudo para apagar isto de vez da minha vida. Aqui está meu convite de casamento e mais uma vez o que minha mãe manda toda semana — os pertences do porco para a feijoada (apenas um dos pratos favoritos), do “porco” do Tio João.
Em seguida, Lucinha virou as costas e foi embora, deixando para trás o passado sombrio.
No sábado, como há mais de 30 anos, o feijão foi para o fogo com os pertences do porco. João chega do trabalho faminto. Joana o recebe com o sorriso doce de sempre, tranca o portão e a porta, sendo que a mesa já está posta.
Serve-lhe um farto prato de feijoada suculenta e borbulhante e senta-se ao seu lado, como sempre faz.
Observa-o deliciar-se até ensopar o guardanapo que prendia ao colarinho da camisa.
Quando, ao final da refeição, pergunta-lhe:
— Gostou, meu amor?
— Sim, feijoada é meu prato favorito e você o faz cada dia melhor, querida.
— Que nada! Fiz igual. Deve ser então o novo tempero.
— Que tempero?
— O que Lucinha trouxe da capital, ontem, quando veio me visitar e entregar seu convite de casamento…
Pobre João, pai de família, trabalhador, não apareceu também no álbum de casamento de Lucinha (sua sobrinha, quase filha).
De tanto comer feijoada, justo naquele dia, o coração não aguentou!