Igual a minha história existem outras ainda não contadas. Talvez mais amenas, talvez mais severas. Similares.
Nasci numa família sem teto. Meu pai era andarilho e conheceu a minha mãe na rua. Ela também andarilhava. Ambos não tinham lar.
Fui gestada com mais duas irmãs. Pelos amigos andarilhos de meu pai, soube que nascemos debaixo do viaduto, num dia chuvoso de inverno. Sem nenhum recurso, papai e mamãe temiam que não resistíssemos à baixa temperatura. A única maneira que encontraram para nos aquecer foi encostando o corpo deles no nosso, principalmente durante as noites em que o frio assoviava a marcante canção da miséria.
Apesar das dificuldades, crescemos; mas, infelizmente, levaram minhas irmãs. Mamãe e papai haviam saído para procurar alimento quando a mulher de cabelos embaraçados e roupas rasgadas apareceu. Ela se encantou por minhas irmãs e as raptou sem nenhuma hesitação. Eu até tentei impedir, mas a mulher me chutou com tanta força que fiquei desacordada. Quando recuperei a consciência, ela já havia sumido com minhas irmãs.
Onde estariam meus pais? Eu precisava desesperadamente deles. O tempo passava e eles não apareciam. Fui procurá-los. Andei horas pelas ruas até que vi o aglomerado de pessoas. Eu, que nasci curiosa, me desloquei até o local e ouvi pessoas falando sobre atropelamento.
— Foi um carro em alta velocidade. O motorista, que ziguezagueava pela avenida, fugiu.
Fui me esgueirando entre as pessoas até chegar à calçada, onde estavam os corpos. Eram meus pais. Entrei em desespero. O meu berreiro não comoveu ninguém.
Sozinha e sem família, tive que me virar. Tinha sede, tinha fome. Comecei a beber água de sarjeta e a vasculhar lixões por comida. Às vezes conseguia alguma coisa. Muitas vezes dormia com fome. Emagreci. Contraí doenças. Desejei a morte.
Até que um dia… Eu estava encolhidinha numa calçada. Não havia conseguido nada para comer. Eu sabia que, se dormisse, esqueceria a fome. De repente, ouvi passos e vozes. Abri os olhos e vi o casal. A mulher se abaixou, me pegou no colo, me enrolou num pano e me levou embora.
Naquele mesmo dia, o casal começou a cuidar de mim. Levaram-me ao médico. Tomei vitaminas, cuidaram de meus dentes, deram-me carinho. Hoje tenho um lar. Moro com a tia Paty e o tio Ri. Eles me tornaram a mascote do Palácio de Espelhos.
Sempre que posso, espio pela janela e fico pensando em quantos outros cachorrinhos estão abandonados por aí.