
APL (Academia Pindamonhagabense de Letras)
Eis que me encontro aqui, contando aos que podem me ouvir: Durante a minha concepção fui me formando pouco a pouco, assim como se formou aquele que um dia me deu a vida.
Na infância fui um rabisco, despretensioso e avulso; na juventude vaguei por prelos e prensas; saí tinindo e engomado, nessa folha encorpada, estive de roupa nova, capa-dura, o perfume de tinta fresca, quase que ainda molhada.
Nasci em família grande, nossa mãe, boa parideira, só na primeira tiragem tive 10.000 irmãos gêmeos. Saíamos em fileira… E logo depois de nós, outra cria com a mesma competência.
Nosso criador (orgulhoso das criaturas) fez festa, noite de autógrafos, deu coquetel de boas-vindas a muitos convidados… Via meus irmãos indo embora, com direito à dedicatória, morar em muitos lugares.
O restante de nós foi ficar em salas iluminadas, livrarias frequentadas, por intelectuais, estudiosos e curiosos. Quando em vez, nos mudávamos. Fomos vizinhos de Iluministas, Romancistas e Psicógrafos. Moramos em casas nobres. É tão bom quando se é jovem visitar outros lugares!
Prateleiras de outras lojas, feito grandes labirintos. E o tempo foi transcorrendo, já não éramos o assunto, de quem adentrava esses recintos. Saímos das primeiras vitrines, nos mudamos mais para o fundo.
Vez em quando alguém perguntava: -Vocês têm ainda algum exemplar daquele tão famoso autor, e seu mais antigo livro, que esqueço o título? Era como música aos nossos ouvidos.
E como por magia, alguém nos manuseava, nossas páginas percorriam. Ah, como é bom o cheiro do ar sem ácaros, o odor de novos perfumes, a claridade do dia, a luz penetrando as páginas! Era como voltar a ser jovem, depois de ter mais de trinta.
Quando nosso pai morreu, fomos até muito lembrados. Saímos em jornais e revistas como obra-maior de escritor tão consagrado. Foi nessa época que novamente meus irmãos foram sumindo. Um a um foi sendo comprado, por pessoas tão cultas, que nutriam por nosso pai relevante estima.
Resultado: Fiquei só, órfão de pai e de irmãos. Fui morar em caixa de papelão, guardada num sótão. Um dia senti uma dor profunda, perfurando meu coração. Oh não! Eram as traças, tinha ouvido falar delas. Devoram livros vivos, corroem suas páginas. Rezei a Deus: Livre-me delas! E parece me ouviu… Veio o cheiro forte, não sei bem o motivo, mas o bicho sumiu.
Certo dia, meio dormente, não ouvia quase barulho de gente. Não sei quanto tempo se passou sem ouvir um único som. Vi luz penetrando pela tampa da caixa. E em meio aos velhos livros que moravam ali comigo, eu fui o escolhido a ver mais uma vez a luz da vida.
Para meu espanto, estava em mãos pequeninas… Era quase uma menina! Que saiu correndo comigo e me deu a mãos mais maduras dizendo: -Olha papai, encontrei o que tanto procuras…
Fui tomado em forte abraço e aberto com carinho e cuidado. Senti lágrimas salgadas a me molharem as páginas, e uma forte emoção quando ouvi: -Enfim está aqui! Esse é o último exemplar dos livros de meu pai.
Não o conheci em vida, mas posso fazê-lo agora, mesmo tanto tempo depois de sua partida. Nascemos do mesmo pai, meu pai escritor, seu pai genitor. Conclui então: Seres humanos e livros, são irmãos!