
a cadeira nº 30 da APL – Academia Pindamonhangabense de Letras
Triagem
― Quantos pores do sol?
― Pores do sol? Não entendi a pergunta.
― Quantos você contemplou nesses seus 21.933 dias?
― Como me lembrar disso? Foram poucos.
― E luares?
― Você acha que perdi tempo com essas bobagens?
― Primaveras? Quantas vezes admirou a beleza das flores?
― Isso é alguma pegadinha? Alguma brincadeira sem graça? Meu tempo todo dediquei a coisas importantes.
― Importantes? Como o quê, por exemplo?
― Ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Eu sou bilionário, sabia?
A entrevistadora entrelaçou as mãos sobre a mesa. Ele prosseguiu:
― Tenho iates, jatinho, fazendas, coberturas no Leblon e Ipanema…
― Eu sei. Agora feche os olhos.
― Por que devo fechá-los?
― Você verá imagens de pessoas. Diga-me se as conhece.
Assim que cerrou as pálpebras, a primeira imagem se formou.
― Consegue identificar a pessoa e o lugar?
― É noite. Inverno. Está garoando. Parece a praça central. Há um homem deitado no gramado. Parece morto.
― Você o conhece?
― Ele tem barbas longas, desleixadas. Está encardido. Tem cicatrizes no rosto. Usa roupas rasgadas. Não, não sei quem é.
― Concentre-se. Ele se parece com alguém?
― …Com meu pai. Mas não é ele. Meu pai se vestia com elegância.
― Quanto tempo não vê o seu pai?
― A última vez que o vi foi quando trocamos socos e ele foi embora de casa. Faz uns 20 anos.
A entrevistadora suspirou.
― Próxima imagem.
― Esse lugar… não sei se conheço. E aquela mulher se parece com a minha mãe. Está numa cadeira de rodas. Chorando.
― Qual a última vez que esteve com a sua mãe?
― Ah! Sei lá. Faz tempo. A última vez foi quando a deixei no asilo.
O entrevistado não demonstrou nenhum sinal de arrependimento.
― Agora, a última pergunta: Quem é Deus?
― Deus? Deus é o dinheiro!
Desolada, a entrevistadora assinou a ficha e entregou a ele.
― Finalmente, estou liberado! Onde fica a suíte presidencial?
― Em nenhuma de suas respostas você demonstrou sensibilidade e arrependimento. Você perdeu a última oportunidade de se redimir. Por isso, será levado ao subsolo do subsolo. O homem de vermelho irá acompanhá-lo.
Assim que o homem foi levado, a entrevistadora não conseguiu conter as lágrimas; afinal, não fora reconhecida pelo próprio filho.