- Sexta-feira. Meia-noite.
Inverno.
Depois da noitada, em razão
dos excessos etílicos, estacionou
na marginal. Precisava esvaziar a
bexiga. Desceu do veículo, abriu
a braguilha e, antes de desaguar,
ouviu:
— Cuidado com a direção desse negócio aí.
A voz vinha do cobertor morrinhento sobre a calçada com bitucas e garrafa vazia de cachaça.
O baladeiro retrucou:
— Você já tá podre. Que diferença vai fazer um mijinho a
mais ou um mijinho a menos?
VOZ INTERIOR
E sem nenhuma consideração, urinou sobre o pano encardido. A reação foi imediata.
— Estúpido! Você acaba de
desperdiçar mais uma oportunidade para mudar de vida.
— Escuta aqui, ô miserável.
Quem você tá pensando que é
pra me chamar de estúpido? Estúpido é você. Qualquer um que
olhar para o seu estado perceberá que você é um fracassado,
sem família, sem lar. Simplificando: você é um inútil!
— Se soubesse quem sou não
diria isso.
Sentindo náuseas, o baladeiPros
eando
Maurício Cavalheiro
ocupa a cadeira nº 30
da APL – Academia
Pindamonhangabense
de Letra
ro levou as mãos à barriga e vociferou:
— Por acaso você é o Papa?
Não é, né? E mesmo se fosse.
Estou pouco me lixando com a
sua identidade. O que eu sei é
que você é um pinguço, um vagabundo, um fracassado, um Zé
ninguém. E isso me basta.
Uma rajada de vento prefaciou
a garoa. O estômago do baladeiro
anunciou a erupção, fazendo-o
regurgitar sobre o cobertor.
— Ei! Pra que isso? Não bastava a urina?
— Não, não bastava. Por que
está reclamando? Você não vai demorar a apodrecer nessa calçada.
— Tenho que admitir: você
tem razão. Mas há ainda uma última chance, e você pode ajudar.
— Eu? Eu não tenho filho do
seu tamanho. E outra: sabe qual
é a possibilidade de eu ajudar
um vagabundo? Nenhuma! Ah,
quer saber? Já deu. Vou pra minha casa. Aproveite a madrugada e faça um favor pra sociedade:
morra!
Em seguida, o baladeiro deu o
primeiro passo para retornar ao
veículo. Neste instante, um vento mais forte carregou o cobertor para bem longe. O baladeiro
parou, voltou e viu o homem de
costas, sem camisa. A tatuagem
tribal no antebraço chamou a
atenção.
— Tenho uma igualzinha a
sua. No mesmo lugar.
Curioso, com o pé empurrou
o indigente. Queria ver a face do
infeliz. Levou um susto: era ele,
sonhando o mesmo pesadelo na
calçada do arrependimento.
Minutos depois, penalizada
com a situação, a morte o carregou no colo.