A página de história de hoje recorda uma crônica do poeta, professor e escritor João Martins de Almeida (1918-1969), que atuou na redação do jornal Tribuna do Norte no final da primeira e início da segunda metade do século XX, tendo sido também seu diretor.
Na crônica, publicada na edição de 24/2/1946, o autor confronta, em paralelo mais cristão que filosófico, o destino do lixo, então produzido pela atividade humana, e a existência de seres humanos pobres. Aqueles que viviam na miséria, colocados à margem por conta da pobreza material e tratados como aberrações perante à “sociedade”, ou seja, como lixo…
Como exemplo de vítima desse cruel desprezo ao qual são sentenciados os considerados “lixo humano”, Martins de Almeida descreve uma moradora da Pinda daquele tempo. Uma mulher de triste sina alcunhada por “Dita Louca…
No próximo mês de maio, no dia 20, completarão 55 anos da partida do professor, poeta, escritor e jornalista João Martins de Almeida. Foi um cidadão participativo e interessado em trabalhar pelo progresso e desenvolvimento do município, assim como sempre manteve a mão estendida às carências da população menos favorecida. Como jornalista (Tribuna do Norte e jornal 7 Dias) liderou campanhas e divulgou sua Pindamonhangaba, sua gente. Em 1946 assumiu a direção da Tribuna depois de, em 1945, já ter sido seu diretor quando em dupla com o não menos competente redator Rubens Zamith Pinda antiga…
Começa Martins de Almeida descrevendo com carinhos elogiosos sua “Princesa do Norte” da época: “Pindamonhangaba é olhada no presente com os olhos do futuro. Ela não pode ser paralelizada em topografia com outras cidades do Vale do Paraíba. Sua beleza é ímpar e não admite confronto. Ruas largas e calçadas, praças ajardinadas, construções moderníssimas, dão à urb foros das grandes metrópoles”.
Depois, descreve mudanças ocorridas no município por conta da evolução, do progresso urbano que experimentava; E aqui acreditamos que isso ocorria após ter, finalmente, admitido a necessidade de encarar nova forma de soerguimento, de progresso, deixando para a história os áureos tempos do café, seus barões e opulência: “O modernismo ciclópico e imperioso veio mudar a fisionomia de Pindamonhangaba. Não atendendo susceptibilidades conservadoras, derruiu solarengos prédios, e varreu da cidade remanescentes características imperiais… Pindamonhangaba, cidade-mulher, paramentou-se garrida de sobrados de linhas arquitetônicas, de bangalôs estilo século XX. Apresentou-se condignamente à recepção do modernismo revolucionista. Firmou-se por fim à saciedade nos estabelecimentos fabris, e soltou-se para o espaço, voluptuosamente, a fumaça dos cigarros das chaminés… Higienizada, não obstante faltar-lhe água (elemento de que se ressentem várias cidades do Vale do Paraíba), Pindamonhangaba atrai aos turistas”.
O destino dos lixos
Em seguida, o professor poeta descreve então a sublime missão dos carroceiros responsáveis pela condução do material inservível recolhido junto às casas e demais locais da zona urbana da cidade: “Nem bem o sol surge ensanguentado do ventre do horizonte, e, recém-nascido abre a bocarra num choro silencioso de ígneos raios, passam pelas ruas ‘seu’ Zezinho, Dito Ramos, Barrigada, Coração, e outros lixeiros, conduzindo suas carroças para forno crematório da chácara Beija Flor”.
É então, depois de formidável “nariz de cera”, tão comum nos textos de antigamente, que o autor comenta a miséria ambulante que infestava calçadas e logradouros públicos: “O lixo humano é, porém, relegado discricionariamente pelas ruas. Pululam pela cidade mendigos cobertos de sanie, crianças pedintes, mirradas e esquálidas, documento pungente da degenerescência do sangue brasileiro… Deus, lixeiro sublime, varre com a vassoura da morte, de quando em vez o lixo humano…”
“Dita louca”
E finalmente vem a história da “Dita louca”. Mulher, bendita, que segundo Martins de Almeida: “…é um exemplo e um triste espetáculo de miséria às pessoas que passam por nossa cidade. Essa pobre mulher, ‘sem ninguém no mundo’, adquiriu o direito de ser infeliz. Sim, a infelicidade é também um direito. Um direito que não pertence aos nababos e aos figurões!… Dita escolheu para sua residência o vasto terreno fronteiriço ao embarcadouro de gado. Ali vive e por certo morrerá. Seu Constantino, Nicolau Folheiro, João do Ismael, João Barbiéri e outras pessoas moradoras das imediações, dão-lha alimento. Camarariamente como Diógenes no seu tonel, Dita vive tranquila, ignorando-se o esforço particular concorre grandemente para o progresso da cidade, e a ponte do rio Paraíba foi reconstruída, ou se o Cincinato quebrou o braço no mercado. Apupada por moleques, seviciada por noctâmbulos, Dita é feliz no seu mundo interior, criado pela sua loucura mansa. Aliás, só é completamente feliz aquele que não tem consciência da realidade – Vida. Pela infeliz demente passam médicos, pessoas altruístas, caridosas que julgam que o seu corpo esquelético se acostumou à friagem das noites de inverno e ao calor dos dias de verão…”
O artigo do redator do jornal Tribuna, João Martins de Almeida, naquela edição é então
concluído com um comovente apelo: “Levemos esse lixo humano para o depósito de um hospital. Levemo-lo para o forno crematório da vossa munificência. Deixemos os detritos dos pobres apodrecerem, mas não deixemos os pobres apodrecerem como detritos!…”