
Escritora Vitória L Miranda, produzindo textos desde seus 10 anos
Ela não falava sozinha, embora respondesse ao nada com certa frequência. Havia na casa uma quietude que parecia aguardá-la – como uma visita que nunca vai embora. O chão rangia, a chaleira chiava, o relógio vibrava com um tique estranho às 3h17, todos os dias. E ninguém além dela parecia notar.
No fundo da geladeira, um pote sem rótulo. Na estante, livros que ninguém lia. No corpo, restos de toques velhos, guardados sem querer.
Algumas manhãs, ela riscava o dia com caneta vermelha. Outras, apenas se deixava permanecer no silêncio entre o abrir da cortina e a dor no cóccix. Nunca falou sobre isso. O médico disse que era tensão. Ela achava que era só o peso do tempo assentando devagar nas vértebras.
Tinha um caderno escondido dentro do armário, entre os lençóis de flanela. Nele, nenhuma palavra. Apenas datas. Círculos. Pequenos símbolos indecifráveis. Às vezes, uma linha era riscada com força, como quem cancela uma dívida. Outras, apenas um ponto, como um sinal de alerta.
Ela sorria para estranhos no supermercado. Uma espécie de acordo silencioso. Nunca por simpatia, apenas para evitar perguntas.
Havia no modo como segurava a sacola – como se fosse parte do corpo – uma intimidade tão antiga quanto o próprio gesto de carregar. Como se tudo o que fosse seu, de fato, coubesse ali: cebolas, sabão em pedra, um comprimido branco que ela não lembrava mais para quê servia.
Às vezes dormia no sofá sem perceber. Outras, de olhos abertos. O teto era mais honesto que muita gente.
Uma vez, o filho perguntou por que ela não saía mais. Ela disse que não havia pressa. Que o mundo sempre volta. Depois, trancou a porta com duas voltas na chave e escreveu algo no vidro embaçado da janela. Sumiu antes de secar.
No fim da semana, lavou todos os panos da casa, como quem prepara o campo para um incêndio.
E recomeçou.
Mas diferente.
Sempre diferente.
Como quem muda de nome, mas continua atendendo por ele.
A memória do osso
Vitória L Miranda
Meu corpo lembra
coisas que minha boca
nunca ousou dizer.
O joelho sabe da queda,
o estômago digere culpas,
os olhos tremem antes do pranto.
Há um país escondido na espinha,
feito de cicatrizes e vírgulas,
onde não se anda:
se rasteja para dentro.
E lá, no fundo,
um nervo ainda pulsa
o nome daquilo que não esqueci
mas aprendi a negar.