Autores de nossa própria vida, todos somos escritores, compondo a cada dia um capítulo diferente de nossa história. Se procurarmos, encontraremos registros de nossa trajetória em toda parte: anotações em cadernos, mensagens enviadas por celular ou computador, documentos pessoais, além das marcas que deixamos nas pessoas e nos lugares onde estivemos. Com isso, não sabemos por quanto tempo resistem os rastros que deixamos, mas nossa passagem por esta vida não passa despercebida.
Fato é que muitos decidem fazer com que esses rastros permaneçam por mais tempo, transformando a escrita de sua vida em “escrevivência”, termo criado pela poeta e prosadora Conceição Evaristo. Sim, existem aqueles que decidem deixar o registro literal de sua existência, seja em relatos autobiográficos, seja em narrativas ficcionais, em prosa ou verso. Para esses cujo coração se volta para a literatura, há um manancial de referências, produzido por grandes autores, sobre o caminho a percorrer, com indicações de modos, estilos, efeitos, exigências, riscos, delícias, erros e acertos.
A partir desta semana, esta coluna vai trazer a voz desses poetas e prosadores discorrendo sobre seu próprio ofício, uma metalinguagem enriquecedora para quem deseja escrever, literalmente, o que já não lhe cabe no peito e precisa ganhar o papel, a tela, o ar.
Nesse percurso, é comum que surjam hesitações, reticências, ainda que o propósito esteja tão claro. Como começar? Escrever sobre o quê? Isso vai interessar a alguém? Desejo ou preciso realmente escrever? Aonde pretendo chegar? Seria apenas um desabafo? Ou uma forma de me conectar ao outro? Por que desejo escrever?
Enquanto as perguntas dançam à nossa frente – explícitas e provocadoras -, as respostas costumam se esconder – misteriosas, quase inescrutáveis. Você precisa procurá-las! O desafio é encontrá-las e consumar o ato – salvífico – da escrita!
O autor austríaco Rainer Maria Rilke, em “Cartas a um jovem poeta”, aconselha: “Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever”. Ele vai além: “Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda”. Se a resposta for afirmativa, Rilke orienta: “pois então construa sua vida de acordo com tal necessidade…”.
Quanto ao tema da escrita – escrever sobre o quê? -, há uma frase muito conhecida do escritor russo Leon Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar tua própria aldeia”. Sim, nossa essência nos conecta ao outro, pois há uma irmandade que nos torna, todos, cúmplices de dores, venturas, sensações, materialidades, sonhos.
E se isso lhe parecer pouco, Rilke adverte: “Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante”. A vida, abundante, está em tudo! Mesmo na escassez de elementos que garantam ou fundamentem o ato sublime de viver!
Note que, muitas vezes, é preciso ajustar o olhar, como ensina a poeta Neila Cardoso. Tudo, aliás, começa no olhar do autor. Não é assim? Olho o mundo (as pessoas, as coisas, os fatos, a mim mesmo), filtro com a razão e a emoção o que vejo (a razão para entender, a emoção para sentir) e transformo o que obtenho em palavras – que vão, espero, enriquecer seus olhos, amado leitor.
É com essa expectativa, esse desejo de contribuir, que se deve escrever – eis em que acredito. Se a necessidade estiver pautada nisso, mãos à obra!