
ocupa a cadeira nº 30
da APL – Academia
Pindamonhangabense
de Letra
Ela chegou inaugurando a madrugada, esgueirando-se pelos corredores, e espiando os apartamentos. Em alguns, a luz curativa havia cumprido a missão, e autorizava o preparo das malas para o retorno ao lar. Noutros, o sofrimento asfixiava a esperança.
A fé é um ingrediente necessário, embora, no calendário de Deus, as sentenças estão marcadas com precisão, e são inegociáveis.
Ela continuou caminhando em silêncio, deixando um rastro gélido, com a fragrância do adeus. Estabeleceu-se no fim do corredor, próxima ao quarto 94.
Ainda faltava um mísero tempo. Atrasos e adiamentos não lhe eram permitidos. Enquanto aguardava o momento estabelecido, ouviu a voz fragilizada e plangente:
— Meu filho… eu vivo o dia… a noite… a madrugada… pensando em seu rostinho angelical.
Se pudesse sentir dores alheias, se seu coração não fosse um bloco de gelo inderretível, se possuísse artérias e sangue, indubitavelmente, desistiria da missão.
— Meu filho… sem você eu não sou nada…, e a vida tem um cheiro sepulcral…
Pela porta entreaberta, viu o relógio pendurado na parede do quarto: 1h18. Em doze minutos entraria em ação.
— Preciso… de você aqui comigo…, até que Deus decrete… o meu final.
1h22. Surgem passos no corredor. Era a enfermeira que vinha aferir a pressão e medicar o paciente.
1h28. Estava chegando a hora. Finalmente, ela se introduz no quarto e espia a cena. Dos olhos do velho em pele e osso, o último fio de lágrima escorre.
Procurou pelo filho, com quem o homem dialogava, e constatou que se tratava de um monólogo.
Placidamente, ela se aproxima do leito, curva-se, e beija a fronte do sentenciado. O velho cerra as pálpebras pela última vez.
A enfermeira, ao constatar a morte, delicadamente, tira das mãos do velho pai abandonado, o desbotado e único retrato.