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Invisíveis

Maurício Cavalheiro ocupa a cadeira nº 30 da APL – Academia Pindamonhangabense de Letra

A senhora anônima morava na modesta casa enraizada na Serra da Mantiqueira. O pauperismo da moradia era suavizado pelos vasos de flores espalhados pelos cômodos e pendurados nas paredes. A senhora aparentava ter vivido 300 sóis. Era franzina, povoada de rugas, tinha cabelos de algodão indomesticados, e vivia com dúzias de gatos. Trajava vestido de pano rude semelhante à veste franciscana.

Ele a conheceu ao entardecer de um sábado. Pedalava pela zona rural quando, depois de forte impacto, o pneu da bicicleta estourou. Sem apetrechos para consertar ou substituir o pneu, sentou-se no acostamento para pensar numa solução. Pela estrada transitavam motoristas, motoqueiros e ciclistas. Nenhum deles se sensibilizou com o infortúnio dele. Desanimado, bebeu o último gole d’água e, enquanto reavaliava o estrago, ela apareceu e disse: “Venha comigo”.

Empurrou a bicicleta por um caminho na mata até chegarem à casa sem reboco de janelas azuis. Entraram na sala. Ela lhe ofereceu chá e um banquinho de madeira rústica para sentar. Em seguida disse: “A humanidade está vivendo a era da invisibilidade. Ninguém mais enxerga ninguém. A solidariedade está se tornando cada vez mais rara. É a deterioração do ser humano”.

Depois, a senhora apontou para a janela, onde ele viu um velho na cadeira de rodas, abandonado no canto de alguma casa. Diante do cadeirante passavam adultos e crianças, mas ninguém parava para conversar com ele. “Percebe? A ingratidão gerencia muitos lares. A velhice parece ser uma doença contagiosa. Basta envelhecer para se tornar invisível. Os asilos estão cheios de pessoas invisíveis para a família”.

Assim que ela encerrou a fala, outra cena apareceu à janela. Sobre a calçada mãe e filhos comendo restos de lixo. “São indigentes sem dinheiro, sem moradia, sem dignidade, sem nada. Quem tem fome não escolhe o que comer. Perceba que por eles passam pessoas bem nutridas sem nenhuma atitude altruísta. A pobreza é invisível, é repugnante àqueles que têm o coração de pedra, àqueles que jamais experimentaram o sabor da fome.”

Em seguida, outra cena: um jovem deitado sobre trilhos de trem. “O suicídio porá fim ao desprezo que recebe dos pais. Pais que o consideram inútil por valorizar a simplicidade e, por isso, tornaram-no invisível. Pais que, diuturnamente, se dedicam ao enriquecimento. Para esses pais, carinho, amor e atenção, são perdas de tempo”.

Ele terminou o chá, se levantou, agradeceu a mulher, dizendo que precisava voltar para casa. Ela sorriu e disse que ele já estava em casa. Ele quase a chamou de maluca. Deixando a casa, lembrou-se da bicicleta. Pensou em voltar, mas a senhora segurou nas mãos dele e o conduziu até a estrada. Foi então que ele viu a bicicleta destruída no solo e, ao lado dela, o seu corpo sendo ensacado pelo resgate.

Proseando

Maurício Cavalheiro
Maurício Cavalheiro
Maurício Cavalheiro é um escritor e trovador brasileiro, natural de Pindamonhangaba, São Paulo. Ele é conhecido por suas obras na forma de trova e também por sua coluna "Proseando" no jornal Tribuna do Norte. Além disso, é membro da Academia Pindamonhangabense de Letras, da União Brasileira de Trovadores (UBT) e da Academia Brasileira de Sonetistas (ABRASSO).
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