Em 1945, o então redator do jornal Tribuna do Norte, professor, poeta e escritor João Martins de Almeida, conforme a edição de 5 de agosto daquele ano, relembra e homenageia em prosa e verso a Henrique San Martin, um musicista pindamonhangabense de comprovado talento na arte musical.
O poeta, que não conhecera esse San Martin em vida, demonstra ser profundo admirador de suas obras: “Não chegamos, infelizmente, a conhecer Henrique San Martin, mas conhecemos a sua obra, e isso nos basta. O indivíduo se agiganta, não pelo seu nome e sim por suas produções”.
Sendo Martins de Almeida dono de um extraordinário referencial artístico-cultural tinha o hábito de lembrar em suas comparações, independentemente de tempo e lugar, vultos afamados, célebres pensadores e autores consagrados. E assim o fez naquele artigo: “Francis Bacon, escreveu em seu testamento estas palavras jactanciosas: ‘Lego minha alma a Deus… Meu corpo a terra, onde me sepultarão obscuramente. E meu nome aos séculos vindouros e às nações estrangeiras.’ E os séculos e as nações aceitaram o legado… Henrique San Martin foi mais singelo e modesto: ‘Lego ao povo de minha terra as minhas músicas que traduzem a minha sentimentalidade e o meu amaro sofrer’”.
Assim como os paralelos que sempre traçava com a intenção de valorizar a pessoa que focalizava, também lhe era comum lembrar em seus escritos comparações e lembranças a citações de outros autores: “A música como bem o escreveu o nosso ilustre confrade Professor Paulo Cesar Pestana, é a linguagem comum da humanidade. É um velho esperanto no intercâmbio espiritual e sentimental dos povos, possuindo uma eficiência garantida pela incontestável reação que a beleza e a harmonia provocam na alma”.
E prosseguia Martins de Almeida lembrando opiniões tecidas sobre a boa música, que tinha como exemplo a composição daquele San Martin: “Moacyr de Almeida, esse gênio extraordinário desaparecido aos 20 anos, e cujas obras nada ficam a dever a Álvares A pena lírica de João Martins de Almeida e a homenagem ao consagrado músico autor da valsa “Sofrimento” de Azevedo, escreveu uma insuperável poesia, referindo-se à música, esta quadra: O ouvido vê! Na luz das paisagens ignotas, O ouvido vê surgir o campo do intangível. O espírito do azul se corporiza em notas. Deus se desfaz em sons e torna-se visível. A boa música resiste aos evos tormentosos, e o seu país é o Universo…”
“Sofrimento” – a valsa Para João Martins de Almeida o talento do músico Henrique San Martin era muito grande para ficar só em Pindamonhangaba. O que comprovava o fato de sua música se encontrar no repertório dos grandes eventos do gênero: “…há dias extraímos de um jornal de São Paulo o seguinte excerto: Valsas inesquecíveis – às 21 horas, pela Grande Orquestra Tupi, sob a regência do maestro Spartaco Rossi: 1º – Waldteufel – Mon Rêve 2º – Henrique San Martin – Sofrimento 3º Eduardo Lamartine Silva – Sentimentos 4º – Zequinha de Abreu – Sedutora 5º – Heineecke – Valsa Fantástica”
Segundo Martins de Almeida, a valsa “Sentimentos” mencionada naquela relação superava até mesmo outras obras de autoria do próprio San Martin: “Talvez nenhuma dessas valsas iguale ‘Sofrimento’ em suave harmonia, nem mesmo a ‘Invocação’, ‘Sonho de Amor’, ‘Pranto de Colombina’ e tantas outras produções belíssimas de Henrique San Martin. Isso porque nenhum desses brilhantes compositores sofreu nem amou tão intensamente quanto Henrique San Martin”.
E é por conta da valsa “Sofrimento” que prosseguem as comparações até o final do artigo: “Esse talentoso pindense usou algo mais do que simples inspiração para compor as suas maravilhosas músicas, usou o sofrimento, e ainda que pareça sofisma, o sofrimento é um bem. É do sofrer da ostra que nos vem a pérola. “É estraçalhando o ninho que a Águia ensina os filhotes a voar. Platão não fosse obrigado a beber cicuta e hoje não seria considerado o maior dos filósofos. “O sofrimento é a academia da alma. As músicas de Henrique San Martin foram escritas com as notas do coração e com a pena do sofrimento, e daí talvez a razão de ‘Sofrimento’ superar magnificamente as outras valsas, no concerto do famoso maestro Spartaco Rossi. “’Sofrimento’ venceu soberbamente. É lamentável que o seu escultor não visse o secesso da sua obra. Escultor, sim! Todo artista perfeito é um Fídias. O seu talento é a argila, e a água de que se utilizará para a modelagem, brota das fontes dos olhos e tem o nome de lágrimas.”
Após a reverência em prosa, o poeta Martins de Almeida concluiu em versos sua consagração ao autor. Expressou em poesia a poesia existente nessa ligação de natureza psicológica na qual todo autor se projeta em sua obra, tornando unos… criador e criatura!
Henrique San Martin Na solitária alcova, Henrique San Martin encara com desdém dos trasgos o assédio. Sabe que vai morrer. Que venha a morte, oh! sim para o seu grande mal já não há mais remédio; que seja breve, o fim. Sonhador, conheceu também ventura imensa. Foi outrora feliz. Seu sonho ora é sepulto no afeleado viver. Abandonou-se à doença… Diz-lhe seu coração no seu clamor inulto: “morre!… Morreu
-te a crença!… O ergástulo da dor, vertendo mágoa e fel – sua alma, inda acalenta a autora da desdita. Seu terno coração lha serve de broquel, e detém a visão dessa mulher maldita que soube ser cruel… Ele não quer viver. E a Deus eleva o olhar. Quem sabe, amanhã, nos gládios d’alvorada, o mundo deixará. Devido ao seu penar sua alma irá aos céus mais arcangelizada, banhada de luar… Sente maga atração, levanta-se ofegante, e contempla à janela o larear dos astros que mudam de lugar de instante a instante, deixando pó de luz, dos luminosos rastros na amplidão estelante. Os elfos do luar, as nuvens de ametista, a lua majestosa … Insólito poder o belo sempre teve… almo encanto, conquista, alegra o coração e afugenta o descrer do visionário artista. E Henrique San Martin, do piano se aproxima, e senta-se febril. Esquece o falso amor que destruiu-lhe a fé, a doença que o dizima, e toca, inda compõe… Repassada de agror cada arpejo tem rima. Como Vagner, se inspira e a inspiração lhe traz renovado vigor. Aplaca-lhe o tormento. E na sublime valsa interpreta os seus ais; derrama a própria dor, o próprio sofrimento nas notas musicais.