— Meu Deus! É você mesmo?
— Sim, sou eu.
— Quase não o reconheci.
— Estou tão diferente assim?
— Um pouco. Seu visual não era esse.
— É verdade. Mas sou eu, em carne e osso. Ou, melhor dizendo, agora mais osso do que carne.
— Mas não é só isso.
— Não? O que mais?
— Bem… Parece que você envelheceu… bastante.
— Ah, sim. Culpa dos percalços da vida.
— O que aconteceu? Quer falar a respeito?
— Fugi de casa. Não suportava mais as agressões.
— Como assim? Pensava que você era feliz.
— Fui feliz até a menininha ir morar com Deus.
— A loirinha? A filha deles?
— Sim. Ela era a minha protetora.
— Sinto muito.
— Tudo bem. Foi por isso que fugi.
— E onde você está morando?
— Debaixo do viaduto. Tem um cantinho lá onde ninguém me perturba.
— Vida dura a sua.
— Que nada. Faço o que quero, vou para aonde eu quero. E se alguém ameaça me bater, saio correndo.
— E onde faz suas refeições?
— Não conta pra ninguém. Eu tenho uma técnica. Fico com os olhos tristes até aparecer alguém de bom coração que me dê algo para comer.
— E se não aparecer?
— Eu procuro nos lixões.
— Que nojo! Você come porcaria? Não passa mal?
— Mal eu passaria se não matasse a fome. Silêncio.
— Você toma banho?
— Tomo sim, de madrugada, nos chafarizes.
— Hum… Algo me diz que faz um tempinho que você não toma banho.
— Estou muito fedido? Silêncio.
— Vou contar um segredo: eu penso em você todos os dias. Se pudesse, levaria você para morar comigo.
Naquele instante, uma mulher esbaforida com a guia canina nas mãos apareceu. Ela se abaixou, pegou a Shih Tzu e a chacoalhou com violência.
— Isso é pra você aprender a não me fazer mais de boba! Em casa você receberá um corretivo.
A cachorrinha latiu pedindo socorro. O vira-lata arreganhou a mandíbula e rosnou. A mulher não se intimidou.
— Xô vira-lata sarnento! Xô!
O cãozinho latiu:
— Você é o amor da minha vida. Quando puder, vá me visitar.
Meses depois, debaixo do viaduto, nascia a primeira ninhada de cachorrinhos mestiços.