
Aconteceu num inverno rigoroso. O vento coreografava a garoa fria, enquanto a menina de roupa rasgada e encardida caminhava descalça pelas calçadas, na esperança de que alguém se condoesse e lhe oferecesse algo para enganar a fome.
Quem a conhecia sabia que ela havia fugido do orfanato por discordar das regras, excessivamente, severas. Desde então, passou a sobreviver debaixo de viadutos e em praças públicas, alimentando-se de restos deixados em lixeiras e de pequenos furtos.
Embora, vez ou outra, se lembrasse das refeições e do dormitório da instituição, não considerava retornar ao confinamento, nem mesmo naquela tarde quando parou diante da doçaria onde viu o homem com cocadas na mão; ao flagrar os olhos esfomeados dela, ele chamou o gerente.
— Escuta aqui, ô meu! Aquela coisiquinha imunda tá estragando o teu comércio.
— Coisiquinha? Quem?
— Aquela porcariazinha lá fora – Esticou o indicador – Ela tá espantando a sua clientela. Tira ela de lá!
— Ela não tá fazendo nada.
— Nada? Tá obstruindo a entrada. Vai lá, dá uns sopapos nela que ela nunca mais vai aparecer por aqui.
O gerente ignorou a ordem.
A menina se escondeu atrás de uma árvore quando viu o cliente caminhando na direção da porta. Ele foi embora indignado, resmungando que nunca mais pisaria naquele estabelecimento. Assim que ele dobrou a esquina, ela voltou a se posicionar na frente da doçaria. Ao vê-la, o gerente caminhou até ela. Ela tentou fugir, mas ele a segurou pelo braço.
— Me solta! Me solta!
— Se acalme, por favor. Não vou lhe fazer mal. Sei que está querendo doces. Não está?
Timidamente ela moveu a cabeça admitindo o desejo.
— Qual você quer?
— Qualquer um.
Ele foi buscar.
Enquanto isso, três homens discutiam do outro lado da rua. De repente, um deles começou a correr, passando pela calçada da doçaria. Numa fração de segundos o estampido manchou a tarde.
Imediatamente, um aglomerado de curiosos se formou em frente à doçaria. O gerente apareceu, assustado, e encontrou a menina imóvel, de olhos fechados no chão. Sem conseguir conter as lágrimas, ele se abaixou e constatou que os doces não eram mais necessários; pois, na boca da menina havia uma bala… perdida.