
Uma das principais funções da arte, segundo o estudioso austríaco Ernst Fischer, é possibilitar ao indivíduo sua própria absorção no mundo, ou seja, o discernimento de sua existência e de seu papel enquanto cumpre seu itinerário pela vida. Ora, essa percepção nem sempre é possível, pois, devido a inúmeras questões que temos de administrar no nosso dia a dia, não há muito tempo para a reflexão. É também por isso que a arte e a educação nos importam.
Vejamos como a literatura pode nos auxiliar na conquista de um viver mais consciente. José Mauro de Vasconcelos escreveu, em seu inesquecível “O meu pé de laranja lima”, que “de pedaço em pedaço é que se faz ternura”. O desafio é reconhecer esse bordado na celeridade dos dias que correm. Já Fernando Sabino ensinou em “A última crônica” que é necessário recolher “da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”. Temos aí duas orientações: vivamos e sejamos cronistas da nossa história! Como se faz isso? No romance “Ensaio sobre a cegueira”, José Saramago clarifica: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”.
Fato é que a vida acontece, cena a cena, diante de nossos olhos tantas vezes distraídos, um descuido que gera ausências. “Quando lemos outras perspectivas, abrimos janelas que nem sabíamos que existiam”, apontou a pensadora Djamila Ribeiro em recente entrevista ao Estadão. É preciso, portanto, olhar para todas essas questões, é preciso ouvir toda essa gente – e cabe à Educação estimular olhares e escutas.
Espetáculo imperdível, a vida implora – exige até – nossa atenção. Ao momento presente e ao passado, recente ou remoto, afinal, tudo tem seu lugar e seu tempo de existir. Por óbvio, há que nos concentrarmos no presente – nunca a presença foi tão importante! Mas nenhum sinal pode ser ignorado. Destaco, pois, dois episódios que abriram janelas impressionantes em minha trajetória de educador.
Numa manhã em que a vida pedia muito mais do que lições gramaticais, um aluno começou a cantar, repentinamente, uns versos de Chico Buarque: “Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês…”. Sua intenção? “Mistério sempre há de pintar por aí”, responde Gil. O bonito é que a turma toda se pôs a cantar com o menino, “interrompendo” de vez minha aula. Foi como entrar num mar calmo, a água fresca acariciando o corpo quente, aquela sensação preciosa de tão desejado bem-estar, uma pausa restauradora. Na hora, talvez eu nem tivesse a compreensão acerca do que acontecia – será que a tenho agora? -, mas isso marcou para sempre a vida deste professor. Obrigado, turma!
Outro episódio: para resolver alguns probleminhas pontuais de disciplina, propus aos alunos o “Julgamento da Aula de Redação”, nomeando juiz, promotor, advogados e testemunhas de acusação e de defesa. Ufa: a aula foi inocentada e o professor também (talvez parcialmente) – a culpa seria dos alunos que não tinham entendido minha proposta pedagógica. A advogada de defesa foi impagável: “O que vocês não entendem é que o Ricardo pensa que nem a gente!”. Nunca fui tão compreendido em toda a minha vida!
Tudo isso a vida vai trazendo para nós. Mas temos de estar vigilantes, para que nada passe em vão, pelo contrário, permaneça, como permanecem em mim essas recordações que compartilhei.
Lição do dia: a escola deve ser um palco consagrado à vida – para entendermos o outro e a nós mesmos, conscientes de nossa presença no mundo. Toda escola precisa ter essa sen-si-bi-li-da-de (muito mais do que a rigidez de portas, janelas e… mentes fechadas).