
ocupa a cadeira nº 30 da APL – Academia Pindamonhangabense de Letras
Passava da meia-noite. O dia me havia imposto demandas exaustivas. Eu estava moído. Banhei-me, escovei os dentes e vesti o pijama. Coloquei a garrafinha d’água na mesinha de cabeceira, fiz minhas orações, e apaguei a luz, deixando apenas o luar se espalhar pelo quarto. Em seguida, me aconcheguei na cama. Antes de fechar os olhos, percebi um pequeno movimento pelo chão. Era uma barata indo à biblioteca.
Meu cansaço desapareceu imediatamente. Quem é que consegue dormir sabendo que tem um inseto desses dentro de casa, exercendo o livre-arbítrio? Será que eu havia deixado algum resíduo de comida na pia? Não, não havia. As louças estavam limpas e guardadas no armário.
Levantei-me com cautela, empunhei o chinelo e acendi a luz para caçá-la. Ela correu e desapareceu atrás da estante de livros. Menos mal que não voou, provavelmente por não possuir brevê.
Imediatamente, assumi a função de sentinela: de olhos atentos, fiquei preparado para o ataque. Quando ela saísse do esconderijo eu a esmagaria: chilepe! chilepe! chilepe! e chilepe! para não ter dúvida do baraticídio. Mas cadê a bichinha?
Decidi apagar a luz para que ela se sentisse segura em deixar o refúgio. O luar seria suficiente para que eu percebesse qualquer movimento.
Instantes depois, ela apareceu na capa de Shakespeare. Não hesitei: fiz mira e atirei. O chinelo voou; mas, mais rápida, ela se protegeu atrás de Machado. E agora? Tirar livro por livro até encontrá-la? Preferi vencê-la pelo cansaço. Uma hora ou outra ela teria que se render.
Quem se rendeu fui eu. Estava cansado demais, quando me deitasse, o mundo poderia cair que eu não acordaria. Ela que morasse entre os meus livros. Talvez fosse uma barata alfabetizada e gostasse de clássicos.
Assim sendo, voltei ao quarto, peguei caneta, papel, e escrevi: “comprar inseticida”. Com a memória assegurada, me desmoronei na cama.
Demorei um pouco para dormir, imaginando aquela baratinha lendo Bilac, Cecília, Joyce, Proust…, ou reinando pelo apartamento.
Para me proteger, fiz uma oração a São Francisco de Assis: pedi que levasse o bichinho para um lugar bom para ele e bom para mim. E dormi.
Por volta das três horas ouvi um barulhinho. Abri os olhos e juro que vi a baratinha dividindo o travesseiro comigo. Sem nenhum receio, ela me olhou e disse com ar de superioridade:
— Ser ou não ser, eis a questão!