Céu noturno. Inverno. Garoa fria. O vento assoviava o terceiro movimento da sonata número 2 para piano em si bemol menor, opus 35 de Chopin.
Elas se encontraram à meia-noite em uma das ruelas do condomínio. A grisalha estava sentada no banco ao lado do cipreste mais longevo. A outra se aproximava.
— Para aonde vai com tanta pressa?
A loira vociferou:
— Eu tenho cara de quem está indo a algum lugar?
— Que bicho mordeu você? Ainda não se acostumou?
— Não é fácil aceitar a transformação. Pra você é?
— Sinceramente, não tive dificuldade para absorver a mudança. De certa forma eu já sabia. Quando fui colhida, eu estava descalça, com as mãos sujas de terra, cuidando do meu jardim. Vi uma luz suave, senti perfume de paz-jasmim, e aconteceu. Como foi com você?
— Estava em Paris quando senti forte dor no peito. Desmaiei. Acordei no Brasil, em uma cama de hospital, sozinha, coberta de dores. Pelo quarto minúsculo que exalava enxofre, sombras entravam e saíam gargalhando. Pedi que Deus tivesse piedade de mim.
— Pensei que fosse ateia.
— Não. Não era. Experimentei várias religiões, do bem e do mal. Nenhuma delas me satisfez. Hoje sei que Deus não existe. Se existisse não teria me abandonado.
— Já se perguntou se seria Ele o responsável pelas escolhas que você fez?
Breve silêncio.
— Sei que pisoteei, feri muita gente. Desprezei amigos. Menti. Traí. Ignorei mamãe. Troquei o amor simples e verdadeiro por pessoas fúteis. Mas precisei agir assim para me tornar uma mulher de destaque na sociedade.
A grisalha movimentou levemente a cabeça, em discordância.
— Onde estavam seus filhos quando aconteceu?
— Não sei. Desapareceram quando adoeci. Percebi que eles só queriam o meu dinheiro, que haviam me sugado a vida toda.
A grisalha se condoeu.
— Vem cá. Deixe-me abraçar você.
— Não quero. Seu abraço não vai resolver nada. Se tivesse mais tempo, faria tudo diferente. Teria uma vida simples, igual a sua: desapegada e sem pressa.
— Você teve bastante tempo. Cada amanhecer era uma nova oportunidade para mudar de vida.
— Agora é tarde. Tenho muito medo de ser levada ao inferno e nele permanecer por toda a eternidade.
A grisalha se levantou e, antes de voltar ao túmulo, revelou:
— O inferno é a sua consciência.